Diálogos com a Esperança — III

L. Lightfeather
5 min readJan 2, 2024

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Clemência chegara ao lar de Esperança pouco tempo depois da última visita de seu irmão Ódio, entretanto, parecia que um ano inteiro havia se passado lá dentro. Havia se teleportado no centro do cômodo e carregava em uma das mãos uma lamparina que foi capaz de iluminar um pouco dos seus arredores.

O mais completo escuro tomava conta daquele ambiente, um murmúrio era capaz de ser escutado em um dos cantos e um agressivo vento fazia uma das janelas bater na parede com constância.

Clemência então caminhou em direção á janela para fechá-la e conforme iluminava mais partes do quarto, era capaz de perceber alguns detalhes. Cacos de vidro se espalhavam pelo chão; como se um terremoto tivesse atingido aquele quarto, rachaduras trilhavam o caminho do chão até as paredes, marcas de martelo tatuavam alguns dos móveis e manchas de sangue secas estavam espalhadas em todas as direções.

Ao se aproximar da janela, fechou-a e percebeu rasgos na cortina e rabiscos entalhados que se estendiam pela parede enquanto populavam todas as extremidades do cômodo com riscos, anotações e frases. Dentre as inúmeras palavras entalhadas na parede, algumas se faziam indecifráveis, mas outras se destacavam diante um oceano de reflexões: “A esperança é a última que morre.”; “A dor cura qualquer doença”; “Quanto mais amargo, melhor o remédio.”; “A manhã sempre traz a brisa solar”; “Dias melhores virão”; “Eu mereço estar aqui”; “As luzes estão apagadas e não tem ninguém em casa”; “O sangue transmite uma mensagem intransmissível”; “O silêncio mata a alma?”; “Eu sou um câncer para minha família”. Por entre aquelas mensagens que Esperança tentava expressar, riscos sinalizando a contagem de dias que somavam mais de 365 linhas verticais espalhadas em diferentes partes do quarto.

Enquanto caminhava em paralelo à parede, passou a ouvir murmúrios novamente e concluiu que era Esperança, seguiu o som da voz até chegar próxima à cama, onde viu mais sangue seco espalhado pelos lençóis e no chão, onde encontrou Esperança com uma roupa suja e encolhida com as pernas entre os braços como alguém que tentava se proteger de alguma coisa.

— A única alternativa para a autodestruição é o amor próprio. Disse Esperança em um tom de voz cansado como se já tivesse dito aquela frase centenas de vezes. — A única alternativa para a autodestruição é o amor próprio. Repetiu.

— Esperança? Verbalizou Clemência ao chegar mais perto e iluminar o canto onde sua irmã estava apenas para perceber cicatrizes de autoflagelo espalhadas por todo seu corpo.

— A única alternativa para a autodestruição é o amor próprio. Repetia Esperança sem sequer se mexer.

Clemência então, evitando assustar Esperança, se aproximou com mais calma e observou o corpo de sua irmã, onde passou a ver algumas palavras entalhadas com lascas de vidro na própria pele, já estranhamente cicatrizadas pelo tempo: “MISANTROPIA”; “LASCÍVIA”; “TRAIÇÃO”; “VIOLÊNCIA”; “DOR”; “MORTE”; “LÁGRIMA”.

Esperança então sentiu a presença de Clemência e acordou daquela transe de pensamentos repetitivos, abriu os olhos e encarou a irmã como se tivesse visto um fantasma e em um impulso, levantou e agarrou sua cabeça com as duas mãos enquanto gritava diretamente na sua cara com todo o resto da força que ainda tinha. — FOI VOCÊ QUE ME COLOCOU AQUI CLEMÊNCIA?

Pega completamente de surpresa, Clemência derrubou a lamparina e sentiu seu corpo inteiro estremecer enquanto a pressão das mãos de Esperança machucavam cada vez mais seu crânio, sentiu que precisava encontrar as palavras certas antes de falar qualquer coisa. Os olhos de sua irmã se enchiam de lágrimas que percorriam todo o caminho do rosto até uma queda livre que começava no queixo e terminava no chão. De repente, seus olhos começaram a se iluminar com uma luz tão vibrante que foi capaz de secar qualquer gotícula de líquido em seu rosto e quando estava prestes a explodir mais uma vez, Clemência se pronunciou.

— Não cabe a mim lhe dizer isso minha irmã, eu vim aqui apenas para te ver mas meu coração dói em saber que demorei tanto tempo. Disse Clemência enquanto pousava umas das mãos no rosto de sua irmã, sentindo sua mão queimar por estar próxima dos olhos cada vez mais flamejantes de Esperança.

— Não importa mais, se aqui me colocaram, aqui eu mereço estar. Mas eu não consigo mais Clemência, essa penitência precisa ter um fim, por favor termine de uma vez por todas o que começaram. Respondeu Esperança enquanto soltava sua irmã e seus olhos se acalmavam.

— A penitência só é sua para vestir se você acreditar que a culpa de toda essa conspiração foi sua, irmã. Se quem te colocou aqui enxergar o tremendo erro que cometeu, você pode ter certeza que o castigo será muito pior, mas não cabe a você praticá-lo. Disse Clemência com um tom de calma que apenas ela era capaz de expressar.

— Eu não consigo mais, a raiva consome cada fragmento do meu ser. Se daqui eu sair minha irmã, eu vou atrás de cada um de vocês para fazê-los sentir na pele a dor que me causaram. Disse Esperança enquanto seus olhos voltavam a brilhar com cada vez mais intensidade.

Clemência então pegou a lamparina, abriu-a e tirou de dentro a vela que era capaz de iluminar boa parte de seus arredores. Segurou-a na mão e fez uma pergunta para Esperança. — Sei que você não esqueceu aquilo que fizemos quando você ainda era criança minha irmã, mas preciso te lembrar: Quantas velas eu consigo acender com essa vela que você me presenteou? O que você me falou aquele dia?

Esperança então se lembrou de uma brincadeira que havia gostado tanto a ponto de entender ainda em sua infância, qual era o seu destino no universo. A luz intrínseca à seu corpo passou a acender novamente enquanto ela respondia a pergunta e olhava diretamente para Clemência. — Milhares de velas podem ser acesas por uma única vela e a vida da mesma, não será encurtada.

Em um instante, as cicatrizes no corpo de Esperança desapareceram, o quarto se iluminou e tudo voltou a ser como era antes quando ela havia acabado de chegar. Clemência havia desaparecido em um piscar de olhos e as únicas coisas que restaram no cômodo foi o lápis deixado por Saudade, o martelo deixado por Melancolia, o espelho deixado por Ódio e agora, a lamparina, deixada para trás por Clemência.

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“L’amor che move il sole e l’altre stelle.” ― Dante Alighieri, The Divine Comedy

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