Diálogos com a Esperança — II

L. Lightfeather
5 min readDec 10, 2023

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Esperança havia perdido a noção do tempo desde sua última visita, passara o passado e vivia o presente transformando o lugar onde havia sido aprisionada com uma explosão de inspiração, havia construído janelas e decorado as paredes com cortinas, criou uma cama e uma mesa de cabeceira que posicionou em um dos cantos e agora se encontrava desenhando as plantas que viriam a popular o cômodo com tons de verde. Se encontrava concentrada porém não conseguia definir quais espécies seriam ideais até que passou a cogitar tentar incluir uma muda de cada espécie que a natureza já foi capaz de conceber.

Quando menos esperava, sentiu uma presença logo atrás. Um cheiro forte, como o de enxofre passou a se espalhar pelo quarto e em um instante, ela reconheceu quem havia chegado.

— Ódio. Verbalizou Esperança sem olhar para trás.

Ódio então se multiplicou, circundando sua irmã com várias cópias idênticas até que a última tomou forma logo em frente à Esperança. Sua voz tinha uma sensação não só sufocante mas também ensurdecedora, cada palavra dita vinha em forma uníssona de todas as direções.

— Você nunca foi capaz de me enganar Esperança. Nasceste com esse perpétuo sorriso que te acompanhará até seu fim mas age como se tê-lo fosse uma opção. O brilho no seu otimismo esconde a malícia da sua intenção pois nada no universo carrega apenas uma face e você insiste em vestir a mesma todos os dias. Disse Ódio em um tom seco enquanto olhava com desdém para os olhos de sua irmã.

— Irmão, minha única intenção era de continuar o que estava fazendo, mas aqui está você e isso só pode significar que mais uma vez, algo está te incomodando. Se eu não escolhi nascer com esse sorriso, você também não haveria de ter escolhido nascer com tanto amargor no coração. Nascimento, entretanto, é uma ação singular; enquanto viver é a mais contínua das condições. Me diga o que eu devo mudar em mim e então vou lutar quantas lutas forem necessárias para fazê-lo. Respondeu Esperança enquanto olhava para cada cópia em busca daquela que representava a versão original de Ódio.

— Pensei que com você enfim distante eu não teria mais que me sentir culpado por não conseguir ver o mundo como você o vê. Mesmo invisível você consegue se esgueirar como uma ladra nos pensamentos, sendo capaz de roubar todo e qualquer coração. Quero que você seja capaz de sentir o que eu sinto por um dia, de ser invadida pelo ímpeto de destruir o que é belo, de popular com morte aquilo que respira vida e de fragmentar em pedaços aquilo que não se encaixa no seu próprio quebra-cabeça. Respondeu Ódio em um tom de pura autoridade.

— Se é isso que deseja, então aperte minha mão e assuma a minha posição. A única condição é que essa troca não há de durar apenas um dia, mas sim uma eternidade. Disse Esperança enquanto se virava para uma das versões de Ódio e estendia a mão justamente para a versão original de seu irmão.

Enquanto estremecia ao perceber que havia sido encontrado, Ódio não hesitou e lançou a mão rumo à Esperança visando um pacto que jamais cogitou ser possível. Esperança então abaixou a mão antes do toque e prosseguiu.

— Preciso antes que você responda uma pergunta, estamos fazendo isso por mim, por você ou por nós? Falou Esperança enquanto esperava por uma resposta antes de erguer a mão novamente.

— Se eu dissesse que é por você, eu estaria mentindo irmã. Se eu dissesse que é por nós, também seria pura falácia, pois apenas eu sei o que você está prestes a enfrentar na minha pele. A reposta então, é tão egoísta quanto eu quero que você se torne, pois é apenas por mim que eu vou apertar a sua mão. Respondeu Ódio como quem já esperava uma pergunta como aquela.

— Ótimo! Se é dessa maneira que eu vou sair dessa prisão, que assim seja. Posso nunca reclamar mas a verdade é que estou profundamente cansada dessa solidão e sinto falta de simplesmente poder correr rumo a qualquer direção. Finalizou Esperança enquanto levantava a mão mais uma vez.

Ódio então tomou conta do que estava acontecendo e percebeu que estava prestes a se aprisionar no mesmo lugar onde seus irmãos e irmãs conspiraram para colocar Esperança. Percebeu que aquela troca não fazia mais sentido para ele e manteve sua mão abaixada.

Percebendo que seu irmão trocou de ideia, Esperança decidiu entregar o que ele buscava de outra maneira. Se permitiu pela primeira vez na sua vida deixar toda sua insatisfação eclodir em uma intensa onda de impaciência que se transformou no que parecia ser a expulsão de Ódio do seu lar.

— O seu problema, Ódio, é que você não aguentaria passar um dia sozinho consigo mesmo nesse lugar, você deposita aversão em tudo que é diferente de ti mas nunca foi capaz de perceber que se nada mais existisse além de você, a única coisa que sobraria para te causar desprezo, seria você mesmo. Você separa e exclui; julga e desconfia; machuca e afasta; bagunça e desfaz — sempre com o único objetivo de se sentir mais completo, mas em realidade, nem sequer sabe o que está buscando preencher. Entenda de uma vez por todas, irmão, que o sentimento que você representa é o mais fácil de deixar entrar enquanto esboçar um sorriso sincero onde não existe motivo para isso, é a tarefa mais árdua quem alguém pode exercer. Disse Esperança enquanto agarrava os braços de uma das cópias em sua frente.

Esperança então começou a brilhar com cada vez mais intensidade até que chamas de um inexplicável tom furta-cor passaram a flamejar de dentro dos seus olhos e o tom de sua voz ficava cada vez mais impiedoso.

— Então, se você acha que pode vir até aqui apenas para destilar sua desconfiança quando a única coisa que eu precisava era uma companhia, EU EXIJO QUE VOCÊ DESAPAREÇA E VOLTE APENAS NO DIA QUE ENTENDER QUE O SEU NOME NÃO DEFINE QUEM VOCÊ É DA MESMA MANEIRA QUE VOCÊ ACABA DE DESCOBRIR QUE A ESPERANÇA TAMBÉM É CAPAZ DE QUEIMAR.

Nesse momento, os braços de Ódio que Esperança segurava se pulverizaram e todas as cópias de seu irmão se desfizeram em um pó preto que se espalhou ao chão e revelou um espelho de rosto ornamentado deixado para trás por Ódio.

Sentindo um estranho alívio depois daquela descarga de emoções, Esperança fitou o reflexo de seus olhos em chamas no espelho e foi tomada por um profundo desgosto ao ver uma versão sua que nunca cogitou existir, desabando em choro no chão enquanto deixava toda a luz do seu lar apagar e o escuro enfim tomar conta.

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“L’amor che move il sole e l’altre stelle.” ― Dante Alighieri, The Divine Comedy

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